sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Gosto tanto de ler e ouvir este senhor

"Quatro nascimentos e um funeral" 
Escrito por Eduardo Sá, na Revista Pais & Filhos (retirado daqui)

Só se explica [ao irmão] aquilo que se compreende. sobre o que não se compreende, compartilham-se dúvidas, acalenta-se a dor que elas nos trazem, procura-se um colo e mimos elegantes e mente-se.

1. Não é verdade que os recém-nascidos sejam sempre bonitos quando nascem, que os pais gostem de todos os bebés da mesma forma, que uma gravidez seja um estado ameno e interessante, e que, de cada vez que se tem um bebé, ele tenha resultado de um ponderado planeamento.

Por mais que seja pensada, uma gravidez é – sempre! - um bocadinho acidental. Por outras palavras, a maioria das gravidezes não são nem planeadas nem, num primeiro momento, desejadas. Essas hesitações, que enviesam a expectativa de um amor incondicional por um filho, ficam como pequenas feridas dentro de cada um dos pais – pela vida fora. Perturbam-nos, silenciosamente, e a forma como essas reticências, dentro de si, lhes trazem remorsos condiciona a relação que constroem com uma criança e o modo como ambos os pais se dão um ao outro. Mais remorsos significa maior receio de represálias (divinas), que podem ameaçar a saúde do bebé e geram, por isso, pais super-protectores

2. Cada bebé nasce quatro vezes numa mesma gravidez. Nasce para a gravidez com as fantasias de parentalidade que se desenham com o planeamento de família. Nasce quando a gravidez se torna real na cabeça dos pais. Nasce quando o bebé, se expressa autónomo na barriga da mãe. E nasce, finalmente, com a relação pais-bebé, após o nascimento obstétrico (quando ele se destaca da relação com os pais, e constrói uma dinâmica de diferenciações e de comunhão que transforma a família e a recentra nele).

A primeira oportunidade organizadora para a vida de um bebé será o planeamento amoroso da gravidez. A grande tarefa de uma gravidez não passa por cada um dos pais assumir a gravidez do seu bebé mas, antes, pela necessidade de cada um deles tomar a relação que têm como a base primordial do seu nascimento (devendo ela equivaler, em grau de importância, à existência do bebé).

Mas, apesar de pensada, a gravidez declara-se (muitas vezes) no útero muito antes de ser sentida na cabeça. Por outras palavras, dum ponto de vista psicológico, a idade gestacional nunca são nove meses. Às vezes, são mais; às vezes, são menos. Esse desfasamento entre o nascimento de um bebé na cabeça dos pais (que, raramente, se dá a par dentro da mãe e dentro do pai) pode transformar a presença do bebé na vida dos pais numa relação que os separa

Também o nascimento do bebé na barriga da mãe não faz que a sua vida própria, dentro dela, ligue os pais ao bebé. Aliás, a depressão do pós-parto começa um pouco aí, quando a incondicionalidade que se imagina no bebé, em relação aos pais, não é correspondida por eles, e é nublada com dúvidas, frieza e hesitações.

O nascimento da relação pais-bebé, após o nascimento obstétrico, exige que o nascimento do bebé empole a relação dos pais. Se ele foi nascendo, com uma identidade própria, em cada um dos três momentos anteriores, a sua presença – olhos nos olhos como os seus pais – multiplica as ligações que todos foram construindo. Se não, o nascimento de um bebé separa-os, e a mãe é deixada demasiado só a fazer de mãe, demasiado esgotada pelas necessidades do bebé (que, apesar de todos os ganhos que lhe traz, pode inibir muitos recantos essenciais da sua vida, como a sua relação amorosa, a sua actividade profissional, e a sua vida social). E os pais prescindem da sua relação, com repercussões que se tornam erosivas pelo tempo fora.

3. Se um bebé morre pouco tempo depois do quarto nascimento (sobretudo, se nada o anunciava antes) tanto pode ficar uma dor a perder de vista, por um amor-perfeito, como um rasto insuportável de remorsos por tudo aquilo que não foi possível viver a três. Se morreu por traumatismo de parto, a dor segura-se no ódio que se dedica à equipa obstétrica. Se morre por acidente, a sua morte mortifica, para sempre.

Como se explica essa morte a um irmão pequenino que o esperou, ora com esperança ora com cepticismo? Como se diz que aquele que todos imaginavam, afinal, ficou na maternidade e não voltará, jamais, para casa? Só se explica aquilo que se compreende. Sobre o que não se compreende, compartilham-se dúvidas, acalenta-se a dor que elas nos trazem, procura-se um colo e mimos elegantes, e mente-se (quando asseguramos que somos fortes o suficiente para não deixar que aconteça nada de igual ao irmão que tanto o esperou).

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